Caminho abaixo de chuva pelas ruas de Porto Alegre. Me desloco para mais uma apresentação do Porto Alegre em Cena. Como meu trajeto é curto, não valia a pena chamar um Uber. Vou sob a proteção parcial de um guarda-chuva, mesmo que minhas botas não deem conta da água e meus pés cheguem molhados ao teatro. O que são dois pés molhados diante das graves ameaças que estamos enfrentando? Enquanto caminho, penso na liberdade que me possibilita esse deslocamento e que ainda permite que nossos teatros estejam abertos recebendo mais um festival internacional de teatro.
Tristes tempos são estes. Nunca pensei que viveria para ver o retorno da censura, que voltaríamos ao período obscuro de nossa história em que as pessoas viam cerceada sua liberdade de expressão. Estamos revivendo as ameaças, os medos, as tristezas e os desencantos pelos quais passaram os nossos pais e avós.
Contemplo a chuva intensa e fina que cai e rememoro as recentes manifestações artísticas censuradas. Primeiro, a QueerMuseu, aqui em Porto Alegre. Depois, uma ou mais telas em uma exposição no Mato Grosso do Sul. Quando li a chamada de uma matéria sobre uma peça de teatro vetada em algum lugar do Brasil, resolvi que chegara a hora, como tenho feito nos últimos meses, de desativar meu facebook. E assim tem sido minha rotina: ativar e desativar minha conta na rede social. Injustiças me afetam, e tenho uma dissertação de mestrado em andamento. Essas injustiças, que aumentam semanalmente, tiram minha concentração, diminuem minha esperança, me impõem certa aflição. Minha pesquisa de mestrado é sobre o pioneirismo e a contribuição de Olga Reverbel para o ensino de teatro no Brasil. O que essa precursora, mulher à frente do seu tempo, diria sobre o momento que atravessamos?
Caminho devagar e penso em alguma estratégia para chamar de volta à razão aqueles que se colocam contra os artistas e suas obras. Como amolecer um coração endurecido? Como tornar sensível um ser embrutecido? Onde poderia residir o perigo nas obras expostas no Santander Cultural? Onde poderia estar a ofensa alegada? Porque não existiram as ofensas tampouco o perigo à elas atribuídos não encontro respostas para minhas duas últimas perguntas. Por que então eles têm medo da Arte?
Não, a Arte não é instrumento de ofensa. Ela é, ao contrário, instrumento de denúncia. A beleza da Arte reside também nas sutilezas, no potencial que tem de desacomodar os acomodados e de fazê-los pensar sobre as tragédias diárias que nos assolam. Os artistas denunciam as atrocidades de governos e movimentos ditatoriais, as mazelas da vida, expõem feridas, apontam os erros e convidam o interlocutor a refletir sobre determinados assuntos.
Manifestações artísticas não são produzidas para incitar ao ódio, à violência. Aqueles que se apropriam das obras, descontextualizando-as para atacarem pessoas e endossarem seus discursos preconceituosos precisam ser chamados de volta à lucidez. Foram lúcidos em algum momento de suas vidas? Seria ingenuidade de minha parte perguntar-lhes se estariam dispostos a sentar com os artistas para entender seus processos criativos? Estariam dispostos a ouvir produtores culturais, professores, historiadores da arte e curadores para aprenderem sobre o papel e a importância da arte na história da humanidade?